Atenção!
A interrupção da gravidez, em casos de estupro, é um direito inquestionável
O direito de meninas e mulheres à interrupção de uma gestação decorrente de estupro, apesar de ser assegurado no Código Penal Brasileiro de 1940 (Lei 28.48/1940), sofre cotidianamente ataques e investidas de setores conservadores e neopentecostais do parlamento brasileiro, sobre a falsa tese de ser em defesa à vida. Tais investidas têm sido barreiras para que crianças e adolescentes, vítimas de violência sexual, tenham acesso aos serviços de saúde para a realização do precedimento de aborto previsto em lei.
Salienta-se que numa sociedade patriarcal, machista e sexista como o Brasil, assegurar direitos de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais, não tem sido tarefa fácil. Nos últimos anos, temos assistido o avanço de setores fundamentalistas e conservadores que tentam barrar e retroceder em direitos já consolidados na legislação brasileira. Aliado a isto, a falta de orçamento, a precariedade das políticas públicas, e a ausência de fluxos tem sido uma constante para as crianças e adolescentes vítimas de violências sexual. Além disso, as convicções pessoais e o juízo de valor de alguns atores do sistema de garantia de direitos têm inviabilizado que crianças e adolescentes tenham acesso ao serviço de interrupção da gravidez decorrente de estupro. Por outro lado, parlamentares, que deveriam atuar para o cumprimento da legislação, militam cotidianamente para inviabilizar que meninas e mulheres “estupradas” acessem o mencionado serviço.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente(Conanda), diante das graves violações de direitos de crianças e adolescentes, ocorrido nos estados do Espírito Santo, do Piauí, de Santa Catarina e de Goiás, em que meninas vítimas de estupro não tiveram direito ao serviço de interrupção da gravidez, deliberou e aprovou uma Resolução com a definição de fluxos para o atendimento humanizado a esse público infanto; contudo a deliberação do conselho foi judicializada pela senadora Damares Alves, que protocolou na Vara Federal Cívil da SJDF medida liminar para suspensão da publicação da Resolução. Em primeira instância, o pedido da senadora foi deferido pelo juiz plantonista que decidiu pela suspensão da publicação da Resolução. Preocupados com a situação, as organizações da sociedade civil (GAJOP, ANCED e ANIS), atuaram no sentido de assegurar que não houvesse retrocessos nos direitos de crianças e adolescentes e, em 6/1/2025, o desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (plantonista), decidiu pela imediata suspensão da decisão anterior, autorizando a publicação da resolução do Conanda.
Frisa-se que o mérito da Resolução não inova, estando fundamentado no Código Penal de 1940; na Lei Federal n 13.431/2017 e no Decreto Federal n 9.603/2018, que estabelecem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítimas e Testemunhas de Violências; na Lei n 12.015/2009 que trata dos crimes hediondos e na Lei 12.802/2013 que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual e no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069/90.
Apesar da elaboração da Resolução ter iniciado em setembro 2024, com tempo hábil para ajustes e contribuições por todos os conselheiros, na Assembleia Extraordinária, realizada em 23/12/2024, 13 (treze) conselheiros representantes do Governo Federal votaram contra a normativa; e em seguida o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania publicou nas mídias sociais nota pública informando que os representantes do Governo Federal haviam votado contra a aprovação do documento.
Essa atitude do executivo federal serviu para instrumentalizar e subsidiar setores conservadores do parlamento que militam diariamente pela criminalização do aborto em casos de violência sexual. Não é novidade que o direito de crianças e adolescentes tenha sido barganhado no jogo da política partidária e ideológica, desde os primórdios da humanidade. A violência sexual é uma das piores formas de violência. Nenhuma criança ou adolescente merece levar adiante uma gestação forçada.
Cabe frisar que, em 2014, com a Portaria nº 485 do Ministério da Saúde, foram normatizados os Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez nos Casos Previstos em Lei (SRIGCPL). Esses serviços podem ser organizados em hospitais gerais, maternidades, prontos-socorros, unidades de pronto-atendimento e serviços de urgência não hospitalares com funcionamento 24 horas por dia e sete dias da semana.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, o Brasil registrou um estupro a cada seis minutos. Ao todo, foram registrados 83.988 vítimas, sendo a grande maioria meninas (88,2%), negras (52,2%) e com no máximo 13 anos (61,6%). A maioria dessas vítimas é estuprada por familiares ou conhecidos (84,7%), dentro de suas próprias casas (61,7%). A cada ano, milhares dessas meninas engravidam no Brasil. Em 2021, foram registrados 17.456 nascidos vivos de meninas de até 14 anos; e, em 2023, dados preliminares indicam que esse número também foi alarmante, com 13.909 nascidos vivos de meninas que ainda vivem suas infâncias.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que as complicações durante a gravidez e o parto são a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 19 anos em todo o mundo. No Brasil, dados indicam que, entre 2018 e 2023, uma menina ou adolescente (10-19 anos) morreu a cada semana devido a complicações relacionadas à gestação. As mães adolescentes (com idades entre os 10 e os 19 anos) têm um risco mais elevado de eclâmpsia, endometrite puerperal e infecções sistémicas do que as mulheres com idades entre os 20 e os 24 anos, e os bebês de mães adolescentes têm um risco mais elevado de baixo peso à nascença, parto prematuro e condições neonatais graves.
No estado do Tocantins, em 2024 foram registrados 854 (86%) estupros de vulnerável, sendo 737 (86,6%) contra meninas e 89 (10,4%) contra meninos. No que se refere aos serviços públicos de atendimento em saúde, dos 139 municípios do Estado, apenas 2 (dois) oferecem o Serviço Especializado de Atendimento à Pessoa em Situação de Violências, sendo na capital Palmas (HGP – SAVI e Hospital Dona Regina - SAVIS) e Porto Nacional (Hospital Tia Dedé). Ao que temos conhecimento, apenas na capital Palmas é realizado o serviço de aborto previsto em lei.
Nos demais municípios, as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual que necessitam realizar a interrupção da gravidez são encaminhadas para a capital Palmas. Em regra, a maioria dessas crianças se quer tem esse direito assegurado, seja pela falta de informação como pela omissão do poder público (falta de veículo para o deslocamento, ausência de fluxos, jogo de empurra entre os órgãos da rede, e a sensação de impunidade dos agressores, etc).
Diante desse fatídico cenário, frisa-se que a interrupção da gestação em casos de violência sexual é um direito inquestionável que deve ser assegurado para todas as crianças, adolescentes e mulheres que tiveram os seus corpos atacados de forma covarde e violenta, cabendo, portanto, ao poder público em todas as suas esferas, garantir atendimento humanizado, respeitoso, com sigilo e privacidade das informações, e ainda considerando a fala e o desejo das vítimas.
Por fim, o não acesso ao aborto previsto em lei viola o direito à saúde, a tratamento digno e a liberdade, e contribui para a mortalidade de meninas e mulheres.
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LaidyLaura Pereira de Araújo é assistente social, especialista em medidas de proteção, com ênfase no acolhimento institucional e familiar de crianças e adolescentes, é servidora pública, atua no Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação do Ministério Público Estadual, é associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Glória de Ivone, integra a Coordenação Colegiada da Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Anced Brasil), integra o Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, a Rede ECPAT Brasil e o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA).
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