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A Servidão Voluntária e o ensino do Direito
O ano era 1548. Amigo de Montaigne, Étienne La Boétie elaborava, aos 18 anos, um importante - e belo - opúsculo nomeado “Discurso da Servidão Voluntária”. “Vocês já leram La Boétie”, afirmava a filósofa Marilena Chauí em uma carta aos seus estudantes no ano de 2005. Tal suposição, entretanto, não pode ser tomada hoje como evidente...
Se não leram, deixem-me lhes contar. No opúsculo, o filósofo francês questionava-se sobre a causa de um paradoxo por ele designado como “servidão humana”: por que os homens desejam servir? A princípio, porque não amam a liberdade. Afinal, não é o tirano apenas um, enquanto tant d’hommes, tant de burgs, tant de villes são muitos? Se não fosse pela ausência de amor à liberdade, haveria uma ruptura certa, necessária e apodítica dos grilhões que os aprisionam. Mas há uma importante distinção entre a servidão dos dominantes e dos dominados.
Os que desejam dominar, os que buscam o domínio, desejam servir e ojerizam a liberdade com um intuito preciso: querem tornar-se tiranos ou, no mínimo, um dos vários tiranetes que circulam na abóbada do poder, como as mariposas em vorta das lâmpidas. Os que são dominados, por sua vez, servem porque são impotentes face à magnificência da força tirânica, imposta seja pela tradição, pelo poder político ou econômico.
Vocês já leram La Boétie? Se não leram, talvez devessem.
Dá-nos ele uma importante ferramenta heurística para pensar o famoso fenômeno da subserviência entre ou - data venia - o puxasaquismo difundido por vezes nos meios acadêmicos, sempre no mundo jurídico.
Vossas excelências, colenda turma, excelentíssimo doutor, tudo conspira para que nunca discordem respeitosamente. Mas sim para que sirvam, curvem-se, aceitem seja o que for. A Deo rex, a rege lex. Isso ocorre tanto dentro dos tribunais, onde os mais novos servidores habituam-se a portar-se face a augusta majestade dos mais antigos; quanto isso ocorre na advocacia, pois o principiante logo nota que uma boa subserviência gera mais favores do que o amor da liberdade. E em todo lugar onde há juristas ou profissionais do Direito as servidões parecem impor-se da mesma forma.
“A servidão voluntária”, escrevia Chauí, na carta supramencionada, é o desejo de servir o superior para ser servido pelos inferiores. É uma teia de relações de força, que percorrem verticalmente a sociedade sob a forma do mando e da obediência”.
O rompimento dessa achacadiça corrente de relações servis é uma das funções do ensino jurídico crítico. O ensino do conteúdo sobre a forma, da ironia face à subordinação irracional (ou com fins de uma nóvel dominação).
Diz-nos La Boétie que a forma de romper com a cadeia da servidão voluntária é negar aos tiranos e tiranetes, a eles (esse 'eles' vago e difuso do poder…), aquilo que eles sempre e a todo momento desejam. Assim, e somente assim, os estudantes de Direito, os estudiosos do Direito, os servidores do Direito, os profissionais do Direito... somente assim serão autônomos e, quiçá, para nós, será instaurado o reino dos fins. E derrubado o reino dos 'sins'.
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