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Ato ecumênico reúne lideranças religiosas e indígena em prol da doação de corpos para a ciência
O Programa de Doação de Corpos da Universidade Federal do Tocantins (UFT), vinculado ao Laboratório de Anatomia e cursos da área da Saúde do Câmpus de Palmas, realizou na sexta-feira (29) uma cerimônia em homenagem aos doadores. Essa foi a segunda vez que o projeto promove um evento com esse intuito de celebrar a memória dos doadores. Organizada por alunos extensionistas e pesquisadores de iniciação científica, a solenidade reuniu lideranças religiosas e indígena, além de familiares dos doadores, professores, técnicos e estudantes, e contou com a apresentação musical de um instrumentista da Escola de Extensão da UFT.
Segundo dados do programa, a Universidade recebe em média cerca de seis doações por ano - entre corpos, órgãos, ossadas e fetos -, mas existe demanda por mais para atender os cerca de 460 alunos dos cursos da Saúde da UFT e os mais de 2 mil visitantes fazem uso do laboratório em atividades práticas a cada ano. As doações precisam ser autorizadas pelas famílias. Porém, a manifestação e formalização da intenção de doar, feita previamente em vida, favorece a decisão dos familiares no momento do luto. Além das doações voluntárias, o laboratório recebe cadáveres não identificados encaminhados pelo Instituto Médico Legal (IML).
"Esse momento é um reconhecimento de um gesto profundo de altruísmo que tiveram esses doadores, cujo legado vai além dos estudantes que são diretamente beneficiados pela oportunidade de uma melhor formação prática em Anatomia, se estendendo a inúmeras outras pessoas que são ou um dia serão atendidas por esses médicos, enfermeiros e nutricionistas mais bem preparados", explicou a professora Gabriela Ortega, coordenadora do programa e professora de Anatomia.
"Nenhum boneco ou qualquer outra tecnologia didática de simulação é capaz de substituir um corpo para o estudo da Anatomia. Mas para nós, os corpos são mais que recursos: são verdadeiros mentores que nos ensinam, inclusive, sobre a sensibilidade que devemos ter ao lidar com vidas humanas", sublinhou ela, que ainda fez questão de manifestar gratidão e respeito pelos corpos encaminhados pelo IML, "infelizmente sem nomes, sem possibilidade de reconhecimento nem de consentimento".
"Eu sempre digo aos meus alunos que ninguém vai ser 'nutricionista ou enfermeiro de Barbie'. A disponibilidade de corpos para estudo prático é algo revolucionário e insubstituível no ensino de Anatomia. Como diziam os anatomistas precursores do Renascimento, 'a morte socorre a vida', e é exatamente isso que acontece com a doação de corpos: podemos aprender e ensinar mais sobre como cuidar da vida", destacou a professora Tainá de Abreu. Segundo ela, o programa proporciona aos alunos não apenas aulas de anatomia, mas também "aulas de cidadania".
Para o vice-reitor, Marcelo Leineker, o programa de doação de corpos é fundamental para potencializar o impacto social da Universidade. "Quem sabe quais doenças poderão ser curadas e que tratamento poderão ser desenvolvidos a partir desse contato dos alunos e pesquisadores com esses corpos?", ponderou.
Denise Costa, egressa do curso de Nutrição, afirmou que o programa foi decisivo para que ela tomasse a decisão de deixar a faculdade privada e mudar para a UFT. "Quando eu ainda era aluna de uma instituição privada, visitar o Laboratório de Anatomia da UFT foi uma experiência que significou muito pra mim. Porque lá onde eu estudava só tínhamos modelos de plástico. O contato direto com os corpos me fez perceber que aqui eu poderia aprender mais e ter uma formação muito melhor. Seis meses depois eu retornei, já como aluna matriculada na UFT", contou ela. "Cada corpo doado para a ciência impacta muitas vidas, e impactou a minha. Isso possibilita que o ensino melhore, que os atendimentos de saúde melhorem, que os profissionais da saúde melhorem, que a pesquisa em saúde avance", finalizou ela, emocionada.
Falando em nome dos estudantes, a aluna Bianca Ramalho ressaltou que a doação de corpos é um ato de abnegação - um sacrifício altruísta em favor de um bem maior que é o desenvolvimento profissional e científico, praticado por aqueles que conseguem olhar além da dor pessoal em um momento de luto. "A doação de corpos abre portas para um futuro melhor, para médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde e todos os seus pacientes. Ela nos ensina sobre diminuir o sofrimento das pessoas, oferecer conforto e dignidade."
Visões religiosas
Seguidores de diferentes religiões participaram no evento e formaram consenso em torno da importância da doação de corpos que, como disse a professora Gabriela Ortega, "é uma forma de ressignificar a morte".
Para o presidente do Instituto Indígena do Tocantins, Paulo Ixati Karajá, a doação de corpos para atividades de ensino e pesquisa pode ser interpretada de forma positiva pela perspectiva dos povos tradicionais. "É claro que cada povo tem a sua cosmologia, seus cultos e suas diferentes concepções em relação à morte, que em geral é considerada um rito de passagem. Mas se pensarmos que em muitas tradições os anciãos são aqueles que têm a missão de carregar a bagagem do conhecimento empírico e transmitir esse conhecimento, o ato de doação do corpo seria um modo dessas pessoas continuarem a ensinar, mesmo após a morte", disse ele.
Iya Isa omo Layê Loyá, representante do Candomblé, também reforçou a importância da doação de corpos. "O povo do candomblé é um povo que acredita que nós devemos doar sempre tudo o que é de melhor que tivermos a oferecer, seja amor, seja a palavra ou o que for, e a doação de corpos é a única forma que temos para formar futuros bons médicos, bons enfermeiros e outros profissionais de saúde", afirmou. Ela ponderou, no entanto, que para essa religião de matriz africana, a doação de corpo não é indicada para pessoas que já estão em posições mais elevadas, como Ialorixá ou Babalorixá, que são as Mães ou Pais de Santo. "Para iniciantes não há qualquer restrição religiosa, do nosso ponto de vista, quanto à doação de corpos ou órgãos. Já quando se trata de Ialorixás ou Babalorixás deve ser realizado o sepultamento em terra, e também outros rituais de despedida", explicou.
Representando o Espiritismo, Alberto Carlos de Jesus Carneiro disse que a doação de corpo "é uma caridade que podemos fazer no pós-vida". Segundo ele, a doutrina espírita entende que, ao fim do tempo de vida na Terra o espírito volta à Deus e o corpo volta à terra, e que isso tem um significado de desprendimento. "De maneira resumida, podemos afirmar que a doutrina espírita corrobora com a doação de corpos para o progresso da ciência. Se o evangelho nos ensina que não existe amor maior do que doar a vida por quem se ama, por que não doar o corpo, para que ele seja um instrumento de progresso da humanidade e de auxílio na formação daqueles que trabalham pela vida, laborando na área da saúde?", questionou.
O pastor evangélico Fausto José Mendes fez coro aos demais religiosos. "Deus amou a humanidade de tal maneira que deu o seu filho. O próprio Cristo deu a vida em favor de todos nós. Na última ceia, Ele entrega o Seu corpo e o Seu sangue, e nos convida a fazer o mesmo. Então, se somos seguidores de Cristo, devemos também nos doar", disse ele.
A visão católica foi representada no evento pela leitura de uma mensagem pela estudante Ângela Trindade. Segundo o texto lido "os doadores de corpos agem com um espírito de caridade que transcende o tempo, e esse ato reverbera nos profissionais formados e em cada paciente que um dia será atendido". Ainda de acordo com a mensagem, a doação de corpos ecoa as palavras do evangelho de João 15:13-15, que diz que "não existe amor maior do que aquele de quem dá a vida por seus amigos".
